Nos últimos meses, minha rotina matinal tem como uma das atividades levar a Antonella para passear e fazer suas necessidades. Ela é uma vira-lata, uma guapeca caramelo, que precisa sair do aperto do apartamento e descobrir as novidades do bairro através do cheiro. Conforme caminhamos, eu a deixo seguir o caminho dela, explorando as ruas de forma errante. Nesse processo, acabei conhecendo alguns cantos, casas e quintais que ou nunca tinha visto ou passava despercebido. Foi então que percebi que a Antonella estava me trazendo de volta um sentimento antigo, o de se permitir se perder. Essa experiência me fez lembrar de uma dessas aulas da infância que nos marcam para a vida.
Em alguma aula de ciências entre a 5ª e 8ª série, estávamos aprendendo sobre perspectiva. A professora Waldicléia então provocou os alunos a enxergar o mundo de uma maneira diferente, sugerindo que, ao sairmos do Max Colin naquele dia, fossemos para casa por um caminho diferente do habitual. Algo simples, mas que pode ter um efeito transformador. Ao aceitar aquele desafio e virar na rua Victor Konder em vez de seguir na Papa João XXIII até a rua da minha casa, desbloqueei um novo olhar sobre meu próprio bairro. Detalhes, construções e paisagens que sempre estiveram ali, mas que os olhos já haviam se acostumado a não ver, foram percebidos.
Essa noção de explorar o espaço urbano de forma mais atenta foi aprofundada durante minha época na faculdade. Na disciplina de Introdução ao Estudo de História, a professora Arselle trouxe o texto "Caminhando na cidade" que convidava os alunos a, obviamente, caminhar pela cidade como se fossem turistas ou andarilhos, com o objetivo de verdadeiramente "apreendê-la" para que assim pudéssemos utilizar a própria cidade como objeto de estudo histórico.
De acordo com o autor do texto, Michel de Certeau, apreender o espaço urbano vai muito além de simplesmente passar por ele. É preciso estar atento, se permitir ser surpreendido, captar os detalhes que passam despercebidos na correria do dia a dia. Certeau convida a uma espécie de "leitura" da cidade, onde cada rua, cada esquina, cada praça tem uma história a contar. Ao caminhar sem pressa, com os sentidos aguçados, é possível se apropriar desses espaços de uma maneira muito mais profunda e significativa. É como se a cidade se revelasse em toda a sua complexidade e beleza. Essa maneira de vivenciar a cidade remete à figura do "flâneur".
Flâneur é um termo francês que ganhou popularidade no século XIX, quando as cidades começaram a se modernizar. Ele se refere a um tipo especial de pessoa: aquela que passeia pelas ruas sem um destino definido, com o único objetivo de observar e absorver a vida ao seu redor. O flâneur é quase como um artista da vida urbana, alguém que encontra beleza e significado nas cenas cotidianas. Ele se mistura à multidão, mas ao mesmo tempo mantém um olhar atento e crítico sobre tudo o que vê.
Esse conceito foi explorado por grandes nomes da literatura e da filosofia, como Charles Baudelaire e Walter Benjamin. Baudelaire descreveu o flâneur de forma poética, dizendo que:
"A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais que a linguagem não pode definir senão toscamente".
Já Benjamin viu nessa figura um símbolo da própria modernidade e da experiência urbana. O flâneur não é apenas um observador passivo; através de suas andanças aparentemente despropositadas, ele é capaz de captar as desigualdades sociais, as contradições e a mercantilização da vida nas grandes cidades. Seu olhar é, portanto, uma ferramenta poderosa de crítica e reflexão sobre o mundo em que vivemos.
A ideia do "flâneur" continua inspirando pessoas nos dias de hoje, como é o caso de João Vitor Panda, um jovem francisquense que tem se destacado, pelo menos para mim, como uma encarnação contemporânea desse conceito. Ele produz um conteúdo interessante para a internet, especialmente em seu podcast "Crônicas de Nada", atualmente um dos meus favoritos. O que torna o trabalho do Panda especial é a maneira como ele se apropria do espaço urbano através da "caminhada contemplativa", como ele mesmo denomina.
Para ele, caminhar sem pressa pela cidade é um esporte, uma prática que permite acessar um novo nível de percepção e compreensão do mundo ao redor. Através dessas caminhadas contemplativas, ele consegue captar detalhes, histórias e reflexões que a maioria das pessoas simplesmente deixa passar. É como se, ao flanar pelas ruas de Curitiba, ele estivesse acessando uma dimensão oculta da cidade, repleta de significados e possibilidades, que são trazidos para os posts e para o Crônicas com uma habilidade com as palavras que só quem tem um léxico amplo consegue brincar.
No entanto, como o próprio Panda diz, flanar pelas ruas de uma cidade não é uma tarefa simples. Requer um olhar curioso, uma mente aberta e uma disposição para se perder. Afinal, é quando nos permitimos sair dos caminhos habituais e conhecidos que as verdadeiras descobertas acontecem. É preciso estar disposto a virar em uma esquina desconhecida, a entrar em uma loja nunca antes notada, a puxar conversa com um estranho na praça. Só assim será possível ter acesso a todas as camadas de significado e história que uma cidade tem a oferecer.
É justamente esse espírito de flâneur que a Antonella tem despertado em mim durante nossos passeios matinais. Ao seguir o ritmo e o faro dela, ao me permitir flanar pelas ruas do bairro com uma sacolinha no bolso e sem um destino fixo, tenho redescoberto as pequenas alegrias de me perder e de me surpreender com o que encontro pelo caminho. Eu seguro a guia, mas quem me guia é a Antonella, nessa jornada de reconexão com a essência da vida urbana. Afinal, flanar não é apenas uma forma de explorar a cidade, mas também de explorar a nós mesmos e de expandir nossa percepção sobre a própria história e sobre o mundo ao nosso redor.