Preto e roxo dizem muito
ou, a importância da sensibilidade e do afeto na educação de jovens e adultos
Um dia a Rosimere estava diferente. Fui cumprimentá-la, mas ela se afastou. Falei com ela, mas não respondeu. Ficou parada dentro da sala, uma mão apoiada no rosto abrindo um olho, outra na barriga fazendo apoio para o cotovelo. O outro olho permaneceu fechado. Era o início da aula, uma tarde fria em Araquari, durante o auge da popularidade dos livros de colorir para adultos. Em silêncio, sentou na carteira após a professora Fabi oferecer um desenho. Pegou um lápis e pôs-se a pintar com a mão direita, enquanto a esquerda permanecia no rosto com o cotovelo apoiado na mesa.
Era uma Ariel, a pequena sereia, que a prof Fabi havia copiado de uma matriz impressa. Eu gostava de fazer meus próprios desenhos, baseados nas conversas que tínhamos no início da aula. Essa é uma atividade típica para crianças pequenas, mas que aquelas senhoras da Comunidade Terapêutica Ebenezer gostavam muito de fazer. Além de ser um meio para eu conhecer um pouco mais a história de cada uma e, quem sabe, através de uma história criada no desenho, auxiliar a tornar aquele ambiente conturbado em algo próximo a um lar
Os laudos eram variados, quando existiam, mas em comum estava o fato de serem mulheres mais velhas neurodivergentes abandonadas pela família. Éramos quatro professores contratados em caráter temporário para esse projeto, sem preparo específico e num ambiente improvisado. A sensibilidade e o afeto eram nossos principais recursos para elaborar as atividades. Os livros de colorir para adultos eram o sucesso editorial da época, acredito que por motivos semelhantes aquelas mulheres gostavam muito de pintar e explorar as cores. Conversando e observando enquanto elas pintavam, eu fazia a leitura de seus desenvolvimentos. A Rosimere era sempre muito simpática ao contar sua história e usava muito verde e cores quentes.
Notei que ela estava pintando com um lápis preto, de escrever, mais rápido que o habitual. Começou pelos cabelos, de cima pra baixo, pintou o braço, a mão, o tronco, tudo de preto. O rosto, que sempre distinguia da cor do cabelo, também foi pintado de preto. Pintou a barriga até a cintura sem mudar o lápis. Parou, olhou para o desenho e nele se demorou alguns segundos, imóvel. Sem olhar, nem ao menos tirar a outra mão do rosto, enfiou a mão direita no pote de lápis feito com fundo de garrafa pet e pedaços de papel colorido colado, fruto de uma atividade anterior, e pegou o primeiro lápis que encontrou. Roxo escuro
Nesse momento, peguei o pote e apenas o aproximei, de modo que ela conseguisse olhar dentro. A decisão foi mantida, roxo escuro. Começou então a pintar a cauda. Pintou até próximo ao fim, deixando apenas uma pequena parte onde a cauda fazia a curva para cima. Começou a pintar a nadadeira, deu quatro ou cinco esfregadas com o lápis no papel e parou. "Cansei de pintar", levantou-se e saiu da sala sem dizer mais nada. Deixou sobre a mesa um desenho escuro, sem seleção de cor ou distinção mais complexa de partes do que meio a meio.
Algo estava errado, a Rosimere não pinta assim. "Ela fica assim quando tá sem o remédio dela", disse a Paloma. "Não tem mais na farmácia, a médica disse que está vendo um outro, mas já faz uns dois meses". Orap é o nome do remédio, um antipsicótico. Depois de sair da sala, Rosimere ficou parada num canto da varanda, na mesma posição de mãos que nunca tinha se desfeito. Deixei ela lá enquanto dava atenção para as outras senhoras. Todas aquelas cores e entusiasmos nas pinturas só me faziam pensar no contraste que havia com aquele desenho preto e roxo escuro sobre a mesa vazia. Esse foi o primeiro dia em que aquelas cores apareceriam
Já para o final da tarde, tentei outra aproximação. Ela estava sentada num banco da varanda, com o cenho franzido olhando para o chão. Me agachei na sua diagonal e chamei pelo nome, não houve resposta. "Não me toque", exclamou ela, recuando o corpo no momento em que fui tocar seu ombro em sinal de consolo e afeto. Recuei a mão, sentindo a tensão no ar. Após ela perceber depois de um tempo que era eu, respondeu às minhas perguntas de maneira sobre a semana que passou e sobre o desenho que pintara naquele dia, foi direta "Tudo preto". Perguntei se esse preto refletia o dia dela, não houve resposta.
Mantive-me parado e agachado ao lado dela por mais algum tempo. O silêncio era pesado. "Até quinta-feira, Rosimere, tchau pra você", disse, estendendo minha mão lentamente com a palma voltada para cima, gesto mais acolhedor do que o primeiro, quando a palma da mão estava pra baixo e o movimento vinha de cima. Ela percebeu movendo apenas seus olhos, sem esboçar reação. Eu então detive o movimento, ela manteve seu olhar fixo na minha mão por longos segundos. Seu rosto começou a relaxar, o cenho se desfez e quase sorrindo disse "ah, vocês já vão?" e estendeu sua mão direita para um cumprimento de despedida.
preto e roxo dizem muito